Por que a imprensa brasileira insiste em chamar de acidente o que é crime?

Acabo de ler uma notícia que, a princípio, parece coisa de pouca importância, mas cuja repercussão social tem um potencial positivo inegável. A agência de notícias internacional Associated Press, em seu manual de estilo, determinou que seus jornalistas não utilizem mais a expressão “imigrante ilegal” para designar a pessoa que não possui todos os documentos exigidos para estar em um determinado país.

A justificativa para a decisão, dada pela vice-presidente sênior e editora executiva da empresa, Kathleen Carroll, é bastante clara e racional: ilegais são os atos, não as pessoas. Em recente viagem que fiz pelos Estados Unidos para cobrir as eleições presidenciais de 2012, pude notar, com uma evidência alarmante, o peso do rótulo “imigrante ilegal” na vida de quem “não tem os papéis” para estar no país. Em todas a mais de 10 cidades que visitei ao longo de 10 estados, de leste a oeste, não houve sequer uma na qual eu não tenha encontrado alguém que sofresse sérias restrições financeiras, de habitação e seguridade social por ser um “imigrante ilegal”.

A decisão da Associated Press, uma das maiores agências de notícias do mundo, ajudará seus leitores, a médio e longo prazo, a enxergar com menos preconceito as pessoas que entram em outro país para trabalhar e estudar, e cuja única falta é não possuir os carimbos e assinaturas oficiais para isso.

E o que isso tem a ver com bicicleta?

Com bicicleta, nada. Mas com a redução da impunidade em crimes de trânsito, tem bastante coisa. O paralelo que faço aqui é com as notícias publicadas todos os dias pelos meios de comunicação e que tratam 99,9% das mortes e lesões corporais no trânsito como simples acidentes. Sendo bastante objetiva na explicação: acidente de trânsito, a rigor, é uma fatalidade, é algo que não podia ser previsto e que, por isso, não podia ser evitado; é algo que conta com uma junção de fatores que escapam ao controle dos envolvidos e que tornam o malefício possível. Um exemplo de acidente seria o de um motorista que sofre um desmaio ao volante e atropela alguém; ou o de um ciclista que, sem saber que comprou uma bicicleta de má qualidade, acaba colidindo com uma pessoa ou outro veículo porque seus freios simplesmente não funcionaram quando acionados. Resumindo: acidentes de trânsito são casos raros, raríssimos.

Exemplo comum de notícia em que crime de trânsito é tratado como acidente

A maioria dos “acidentes” de trânsito que vemos todos os dias nos noticiários são ocorrências previsíveis, fruto da imprudência, da irresponsabilidade de motoristas que dirigem sem se atentar para a segurança alheia. Não é preciso ser nenhum especialista em trânsito para concluir que dirigir em alta velocidade, alcoolizado, desrespeitando sinalização ou realizando manobras bruscas aumentam as chances de provocar danos físicos, inclusive fatais, a outras pessoas e a si mesmo. Quem dirige de forma imprudente, ainda que não tenha a intenção de matar ou lesionar alguém, está assumindo o risco de fazê-lo porque as toneladas de aço que maneja podem, sim, provocar grandes estragos quando mal utilizadas. Um carro, ônibus, caminhão ou moto são, absolutamente, armas em potencial.

Crime previsto em lei

Matar ou lesionar alguém fisicamente, mesmo sem intenção, enquanto se conduz um veículo automotor é crime, segundo os artigos 302 e 303 do Código de Trânsito Brasileiro, com penas de detenção e “suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”. A pena de detenção, aliás, pode ser aumentada em diversas circunstâncias previstas pelo próprio CTB, entre elas: quando o crime se dá na faixa de pedestres ou na calçada; quando o condutor deixa de prestar socorro à vítima ou foge do local da ocorrência, entre outros casos.

As notícias de “acidentes” quase sempre envolvem vítimas, fatais ou não, e quase sempre estão relacionadas a excesso de velocidade, álcool e imprudência – ou tudo isso junto, o que não é raro. Por quê, então, jornalistas insistem em chamar de acidente o que é, por todos os fatos, um crime?

Informação imparcial ou jornalismo blindado?

A boa prática do jornalismo exige que se respeite o princípio da presunção de inocência e o direito de defesa das pessoas, que não se execre ninguém mesmo quando a culpa pelo crime está provada e, muito menos, que se julgue a intenção das pessoas, como um narrador onisciente que conhece o íntimo dos personagens da história. Não cabe ao jornalista o papel de juiz, mas de alguém que reporta os fatos com base em evidências fidedignas e certas.

Acontece que esse cuidado com a boa prática jornalística, muitas vezes, deixa de ser cuidado legítimo e passa a ser “blindagem” do jornalista (e da empresa para a qual ele trabalha) que não quer assumir o risco da notícia. Afirmar que alguém assassinou, roubou, estuprou é algo forte e que exige provas suficientes que sustentem a afirmação. A prova vem antes – ou pelo menos deveria vir – da afirmação. E reparem que “afirmação” é muito diferente de “acusação”. No jornalismo feito com fatos, afirmar que uma pessoa cometeu um crime não tem nada a ver com condenar ou achincalhar alguém em praça pública, mas sim de ser fiel aos fatos e de chamar as coisas pelo nome que elas têm segundo a realidade.

A imprensa brasileira, contudo, tem pudores, medos e delírios de imparcialidade que, levados ao extremo da blindagem, resvalam na injustiça e no erro, como é o caso dos crimes de trânsito que viram meros acidentes nos noticiários. Nesses casos, a notícia “imparcial” – eufemismo para blindada – não é inócua. O uso sistemático da palavra acidente para verdadeiros crimes nos faz acreditar, pelo embrutecimento da repetição, que “fatalidades” assim acontecem, que é algo natural do trânsito das grandes cidades ocorrências que matam 5, 6, 10 pessoas de uma vez e que causam alguns quilômetros de lentidão – e de tão grosseiro que vai se tornando nosso senso crítico, não raro nos atentamos muito mais para o dado do congestionamento do que para o número de vítimas – que nunca são “apenas” as que morreram no choque, mas também aquelas que continuam vivas: familiares e amigos dos mortos que sofrerão para sempre com a perda.

Palavra mágica: “suposto”

A palavra mágica que blinda repórteres e seus empregadores em diversos casos é “suposto”. “O suposto atropelador”, “o suposto assassino”, “o suposto estuprador”, “o suposto ladrão”, e por aí vai, numa perpétua cadeia de suposições pró-forma, ao melhor estilo em cima do muro que atenua realidades tantas vezes perversas.

“Pensei que ia morrer, diz jovem agredido por lâmpada desgovernada na avenida Paulista”. Você imagina esta notícia dada desta maneira pela imprensa?

É comum vermos nos noticiários que fulano agrediu, matou ou feriu outra pessoa usando uma barra de ferro, uma faca, uma pedra, uma lâmpada (!). A certeza da agressão e sua autoria por uma ou mais pessoas é exposta nas notícias sempre que há esta evidência nos fatos. Esses objetos todos – faca, lâmpada, etc –  não são armas por si, mas se transformam em uma nas mãos erradas. Então por que “carro desgovernado provoca acidente e mata duas pessoas”? Por que “carro derrapa e provoca acidente na estrada?”. Por que  ”carro em alta velocidade decepa braço de ciclista”? Carros, facas, pedras, lâmpadas, barras de ferro e qualquer outra arma em potencial não cometem crimes por si mesmos porque ficaram desgovernados, mas porque alguém, com inteligência e vontade, agiu de forma criminosa transformando-os em armas de fato.

Tudo isso para dizer que há uma diferença factual, moral e jurídica brutais entre dizer que “um carro e um pedestre se envolveram em um acidente na manhã desta sexta-feira” e “um crime de trânsito, cometido por um motorista, vitimou um pedestre na manhã desta sexta-feira”. Quem mata ou lesiona enquanto dirige não provoca acidente, comete crime.

Por isso não é inócua a banalização, pelos jornalistas, desses crimes. Não é inócua a suavização e naturalização deles. E não é inocente a opção da mídia brasileira por não mostrar os veículos automotores como armas em potencial nas mãos de pessoas erradas. Afinal, que empresa jornalística ousa evidenciar, publicamente, essa faceta do produto dos seus principais anunciantes?

Ditadura do “suposto”: câmeras registram ação do atropelador, ele se apresenta à polícia e, ainda assim, é chamado de “suposto atropelador”

Pelo uso correto das palavras e pelo fim da impunidade

Diante dessa letargia frente à epidemia de crimes de trânsito suavizada pela mídia, é absolutamente necessário o trabalho de civis que lutam contra a impunidade de motoristas que matam e lesionam enquanto dirigem. Esse é o caso das pessoas envolvidas no movimento “Não foi Acidente”, que lutam para que a legislação brasileira seja cumprida com rigor em casos como o que vitimou, em julho de 2011, o administrador Vitor Gurman, atropelado na calçada por uma motorista bêbada. Gabriella Guerrero, assassina de Vitor, segue em liberdade e andando às margens da lei. Embora sua carteira de motorista tenha vencido em julho do ano passado, ela foi flagrada recentemente pela reportagem do CQC, da Band, dirigindo seu carro por São Paulo.

Imagem retirada do site do movimento “Não foi Acidente”

Associated Press: exemplo a ser seguido

Ao determinar que seus repórteres não utilizem mais “imigrante ilegal” para designar pessoas que imigram ilegalmente para outros países, devolvendo-lhes a dignidade que o preconceito de um rótulo lhes rouba, a Associated Press assume o risco de desagradar não apenas leitores que não simpatizam com imigrantes, mas principalmente gestores públicos e políticos claramente contrários à imigração, que criam e aprovam leis com o objetivo de dificultar ainda mais a vida dessas pessoas.

A diretriz da AP, contudo, está baseada num princípio bastante razoável e difícil de ser deslegitimado: a fidelidade aos fatos, não aos preconceitos.

Resultaria em um ganho incrível para a sociedade se os manuais de redação e estilo da mídia brasileira reavaliassem o uso do termo “acidente de trânsito” para designar fatos que são, claramente, “crime de trânsito”. Sem dúvida isso teria importante impacto contra a banalização de ocorrências onde, na maioria das vezes, o motorista assume o risco de matar. Chamar as coisas pelo nome que elas têm nos dá uma dimensão mais clara da realidade (e da gravidade) dos fatos, tornando-nos pessoas mais razoáveis e conscientes, e livrando-nos do embrutecimento social ao qual a repetição de falácias nos acomete.

Sabrina Duran